Montesquieu, em seus pensamentos, ensinava: “Quando vou a um país, não examino se há boas leis, mas se são executadas as que há, pois existem boas leis por toda a parte”. E Sólon, o filósofo grego, ao ser perguntado se outorgara aos atenienses as melhores, saiu-se com esta resposta: “dei-lhes as melhores leis que eles podiam aguentar”. As duas pequenas lições calham bem no momento vivido pelo país.
Primeiro, por refletir o estado geral de anomia que toma conta da Nação. A quebra da ordem ronda os espaços nacionais, puxando a anarquia, a desorganização do clima institucional e a instabilidade social, sob uma gigantesca teia de difamação, calúnia, troca de ofensas. Segundo, pela constatação de que o nosso acervo normativo, considerado um dos mais avançados do mundo, parece não ser suportado por importantes segmentos da sociedade.
Fatos recentes escancaram as observações acima. Uma greve de policiais no Rio Grande do Norte foi considerada ilegal pela Justiça, com a determinação de “imediato” retorno ao trabalho das categorias nela envolvidas. Um desembargador chegou a ordenar que os comandantes das forças policiais prendessem os responsáveis “por incitar, defender ou provocar a paralisação”. A decisão deveria ser cumprida de imediato sob pena de uma multa diária de R$ 100 mil, montante a ser rateado entre as entidades à frente da greve.
A PLANILHA DA ILEGALIDADE
Nessa última quinta-feira, o sindicato dos metroviários de São Paulo deflagrou uma greve geral, tendo como motivo um protesto contra a privatização de duas linhas do sistema. Um desembargador do TRT decidiu que 80% da frota deveriam circular nos horários de pico e, em caso de descumprimento, estabeleceu uma multa diária de R$ 100 mil.
A planilha de multas determinadas pela Justiça, nos últimos anos, tem se avolumado. Em 2014, os metroviários fizeram uma paralisação de 5 dias. A Promotoria de São Paulo pediu na época a aplicação de uma multa equivalente a 3,33% do salário mínimo dos grevistas, perfazendo o montante de quase R$ 355 milhões de multa indenizatória. Houve, ainda, o pedido de bloqueio das contas bancárias do Sindicato dos Metroviários. Os pedidos não foram atendidos. Mas outras decisões do Judiciário no sentido de punir “greves abusivas” não têm sido cumpridas.
As greves na administração pública, particularmente em setores de serviços essenciais, como saúde, educação e mobilidade urbana, devem se pautar em parâmetros especiais, a partir de danos que trazem para as comunidades. Os casos continuados de greves na administração pública e a ausência de cumprimento de decisões de juízes acabam corroendo a imagem do próprio Judiciário, a quem não se pode negar o resgate de papel de protagonista central na atual quadra política vivenciada pelo país.
Nesse ponto, convém expor o paradoxo: ao mesmo tempo em que retoma sua posição de Poder admirado e aplaudido (o juiz Moro é considerado herói), sob apupos que a sociedade encaminha na direção dos outros dois Poderes – o Legislativo e o Executivo – o Judiciário tem colecionado decisões que vão direto para o lixo. Alguém pode objetar: o país vive um ciclo de grandes tensões, com julgamentos de altos empresários, executivos e atores da política em todas as instâncias da Justiça, dificultando aos Operadores do Direito – Ministério Público e Judiciário – o controle de todos os atos litigiosos. Tem procedência esse argumento ouvido aqui e ali? Ou se trata de esforço para “aliviar a barra” dos operadores do Direito?
A DEUSA TÊMIS
A imagem de uma mulher de olhos vendados, carregando em uma mão a balança e em outra a espada, traduz a aplicação da justiça para todos, ou seja, não deve haver distinção entre simples e poderosos. A balança significa o instrumento para “pesar” o direito de cada um e a espada é a ferramenta para defender o que é justo. O simbolismo expresso pela Deusa Têmis chama a atenção. Mas, quando se registram casos de desobediência civil – como esses que se multiplicam na onda crescente de greves de servidores públicos – a impressão é de que a deusa, além de cega, parece surda. Não tem ouvido o clamor das comunidades pelo respeito à lei e à ordem, pela aplicação das decisões tomadas pelos quadros da Justiça.
A par do descumprimento de decisões judiciais, emerge a impressão de que tem faltado aos integrantes do Poder Judiciário humildade, ou algumas virtudes que Bacon descreve em seus ensaios: “os juízes devem ser mais instruídos do que sutis, mais reverendos do que aclamados, mais circunspectos do que audaciosos. Acima de todas as coisas, a integridade é a virtude que na função os caracteriza”. Nesse ciclo de elevado protagonismo dos juízes, vale lembrar a velha sentença de que devem se resguardar de inferências desmedidas, falando apenas nos autos, evitando as luzes fosforescente da mídia e a ânsia por visibilidade. O individualismo parece ter baixado sobre o arquipélago judicial, a ponto de se aduzir, por exemplo, que o Supremo Tribunal Federal compõe-se de 11 ilhas, cada qual com brilho próprio.
Outra abordagem que se faz sobre o Judiciário, principalmente sobre os membros do STF, é a de que interfere nas funções de outros poderes, seja por meio de produção de normas – extrapolando o papel de interpretar a CF e adentrando o terreno do Legislativo – seja por meio do confronto às prerrogativas do Poder Executivo. É compreensível que, em tempos de intenso litígio, envolvendo figuras centrais da política e dos negócios, haja acentuada demanda sobre o Judiciário, com sobrecarga de processos nas instâncias judiciais. Os casos sob a égide judicial, por sua vez, disparam ampla cobertura dos meios de comunicação, despertando o gosto de aparecer na mídia por parte de integrantes do aparato investigativo. No Estado-Espetáculo, os atores são atraídos pelo palco midiático. Floresce, assim, o jardim de vaidades.
Por último, lembremos esta lição de Bacon: “ juiz deve preparar o caminho para uma justa sentença, como Deus costuma abrir seu caminho elevando os vales e abaixando montanhas”. Que a deusa Têmis faça bom uso da balança e da espada.
Texto Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação.